Friday, June 03, 2005

O Seara

Admito, à partida, que não sou um espectador assíduo de programas desportivos com comentadores; daqueles em que debatem o que se vai passando ao longo das jornadas. Tenho mais que fazer. E por outro lado, as opiniões que dali surgem geralmente não me surpreendem nem me informam muito. Cada um a puxar para o seu lado mas todos com muito medo de fazer a mínima investida nos pontos sensíveis: o seu próprio clube e os jornalistas desportivos, nomeadamente as televisões. Seguem a regra de na TV não atacar a TV. E para estar a ouvir desancar nos árbitros conheço quem o faça melhor e com mais piada. Aquilo pretende ser uma espécie de mostra acerca do que pensa o comum dos adeptos sobre futebol. Só que esse tipo de opiniões podem ser encontradas nos blogs. Ainda por cima, de uma forma mais livre, inteligente, interventiva e humorística, do que aquela que vamos vendo pela TV.
A coisa já existe há uns anos e parece ser uma fórmula de sucesso. As televisões voltam sempre com insistência ao mesmo modelo, época após época. E ao longo dos anos, tenho a dizer que o SPORTING não tem sido muito favorecido com as escolhas que têm sido feitas para o representar. Abro a excepção a Luís Coimbra, o melhor de todos os do SPORTING e a Dias Ferreira, com quem muitas vezes tenho discordâncias mas que, ainda assim, acho que é capaz de defender bem o nosso clube. Quanto aos outros, dos que me lembro – João Braga, Santana Lopes e Jorge Gabriel - mais vale não adiantar muito. A simples hipótese de considerar estes cavalheiros defensores, representantes, simples paineleiros ou outra coisa qualquer do SPORTING, provoca em mim um desconforto que me impele imediatamente a mudar de canal. Escolher malta deste calibre para falar do SPORTING é, logo à partida, dar trunfos ao adversário.
Nem sequer estava para fazer deste assunto tema do blog. Acho que os que me lêem devem estar mais interessados noutras coisas do que propriamente em paineleirismos.
Mas devo dizer que vi recentemente um desses programas do princípio ao fim e fiquei de rastos. De tal modo abalado que tive vontade de vir aqui partilhar convosco o meu espanto. O motivo do abalo deveu-se ao facto de eu ter assistido a um programa com o supra sumo destes shows televisivos: o Seara. Digo-vos com toda a verdade: não fosse eu já adulto bem constituído e com idade para já não ter muito com que me surpreender e a experiência teria sido traumática. A ponto de a família ter que me enviar para um psi (cólogo; quiatra ou canalista) que, vamos lá, tomasse conta da ocorrência se o tratamento ainda fosse possível. Acredito que haja malta que fique literalmente destroçada só pelo facto de o ouvirem e de o verem. Esqueçam a Pinhão, o Jorge Máximo e o Barbas. Ao pé do Seara não passam de simples artolas sem nada que os distinga. O Seara é, para utilizarmos uma expressão do comentarismo bolístico à Gabriel Alves, «um espectáculo dentro do espectáculo».
Passemos aos factos.
Aquilo começa por irritar logo na apresentação. Ainda o moderador está a apresentar os participantes e o Seara já se está a rir, não se sabe muito bem de quê. Depois há a pose: daquelas quatro pessoas, três estão sentadas nas cadeiras. Mas o Seara – se calhar devido a respeitáveis problemas de ordem fisiológica – passa o tempo todo aos saltinhos. A não ser que os gajos da SIC se tenham lebrado de lhe por um amortecedor de automóvel na cadeira, o homem deve por certo andar com problemas numa determinada parte do corpo. Começa o debate. Na verdade, não se trata de debate nenhum porque ao longo de todo o programa o Seara vai estar constantemente a interromper os outros; ele não tolera nada que tenha tenha princípio, meio e fim. E nem está ali para debater ideias porque não é capaz de o fazer. Ele vai para ali para mandar aquilo que ele acha que são piadas e balelas. Deve ser por ele próprio estar constantemente a mudar que se sente impelido a interromper os outros. Que eu me lembre, num curto espaço de tempo, já o vi mudar de partido, de opinião sobre Vale e Azevedo, de opinião acerca da construção do novo estádio, de opinião sobre Camacho, de opinião sobre Valentim Loureiro, de opinião sobre Trapattoni e de outras que não interessam para aqui. Voltemos ao debate. Quer o moderador entenda começar por ele ou por outro qualquer, é sempre ele que começa. A cena é do género:
Moderador: «Boa noite Guilherme Aguiar, mais um brasileiro para o FC Porto?»
J. G. Aguiar [descontraído]: «Boa noite. Pois é...»
Seara [saltitando na cadeira]: «...Desculpe, eu não queria interromper o meu amigo Guilherme Aguiar mas era só para dizer que acabo de chegar da Casa do Benfica de Vila Pouca da Perna Torta e aí me pediram para eu aproveitar esta oportunidade de estar aqui na televisão e endereçar saudações ao ex-jogador do Benfica, Michael Thomas. Era só.»
J. G. Aguiar [tentando recuperar o que estava a dizer]: «Pois é. De facto é mais um jogador que chega...»
Quando algum dos outros comentadores consegue arrancar com a primeira frase, aí é que começa a guerra: está tramado. À mínima oportunidade o Seara vai começar a interromper, falando do seu clube ou da sua vida privada. Nada de comentários, análises ou opiniões. O Seara não vai além da «posta-de-pescada», ou da piadola sem graça. Quando lhe pedem mesmo a sua opinião, seja sobre o que for, ele tira da mala umas folhas do jornal O Jogo e começa a falar de um tribunal qualquer que ninguém sabe muito bem onde fica, como se estivesse a falar de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Afinal este jornal tem mais utilidade do que aquela que eu pensava: mete gente a dar opinião como se fosse a sério.
Quando se fala dos outros clubes... aí o Seara dá início a um dos seus números predilectos: tentar lançar a confusão no clube dos outros julgando que o está a fazer com subtileza. Dá bitaites sobre coisas que vai ouvindo aqui e ali, a maior parte delas sem relevância nenhuma, e faz aquilo numa tentativa de ser simultaneamente provocador e inocente, do estilo «com esta é que eu te lixo» e fica ali, com o mesmo tique do presidente do seu clube a dizer «ãh» umas quantas vezes seguidas. É claro que não provoca nada a não ser a irritação de quem não se sente na obrigação de se entreter com estas charadas. E a quanto à subtileza com que o faz, a do Seara é a mesma da de um chimpanzé a tocar harpa. Resultado: toda a gente se chateia com a perda de tempo e ninguém percebe a ideia que os outros dois estavam a tentar expressar.
Depois há também a rábula da imprensa estrageira. Em certas alturas – se calhar quando vai ao aeroporto esperar alguém – o Seara aproveita para trazer um jornal estrangeiro. Já o vi com jornais espanhóis e italianos. Bota um ar sério, puxa do tablóide e tenta corroborar uma daquelas tiradas que ele julga altamente pertinentes. Então se algum desses jornais fala do Benfica, o Seara aumenta logo de intensidade os seus pulinhos e começa a dizer que o número de adeptos em Portugal já vai em 14 milhões – os que nasceram e os que ainda estão por nascer. Fica claro para todos que ele não é leitor regular do tal jornal e só o levou para ali para impressionar simplórios que, só por isso, o devem passar a considerar um letrado.
Mas há mais. Quando a coisa não lhe está a correr de feição. Ou seja, quando Dias Ferreira já está irritado, Guilherme Aguiar já o arrumou com argumentos e o moderador não o «safa», o Seara muda imediatamente de assunto e puxa para cima da mesa uma embalagem com uns pastéis quaisquer que ele diz que lhe foram oferecidos por um postista ou sportinguista não sei onde. Tenta com isso evitar ir por um caminho que não lhe interessa, dadas as suas evidentes incapacidades argumentativas, e assim mudar de assunto. Tipicamente benfiquista: para onde vai tem que levar farnel. Nem para o raio de um programa de televisão pode ir sem merenda. Adivinha-se o dia em que de baixo da sua mesa vai sacar de um garrafão de 5 litros.
E a criatura tem pretensões (não sei muito bem a quê) e lá pelo meio faz sempre o número do gestor do futebol moderno. Pára o sorriso, começa a abanar as mãozinhas e diz três vezes seguidas: «Vamos por as coisas...ãh»; «Vamos por as coisas...sim»; «Vamos por as coisas...ãh. No futebol moderno o merchandising é muito importante, vejam o Real Madrid». Os que estão lá em casa e têm um mínimo de inteligência - a maioria - ficam a pensar: o Real Madrid todos os anos espatifa a preparação da época por causa da história de ir em Agosto vender bonés para a China, e agora vem para aqui este gajo falar na gestão moderna do Real Madrid? Claro que para dizer tal banalidade não era preciso por um ar tão grave; mas o Seara gosta de recorrer à solenidade bacoca tão em voga entre políticos de 3ª categoria.
O Seara é adepto da globalização, do benfiquismo, claro. Sempre que passa férias fora de Portugal trata logo de o dizer muitas vezes para que toda a gente saiba. E lá pelo meio diz que encontrou não sei quantos benfiquistas ali para os lados da Cochinchina. Argumento imbatível, ora essa.
O Seara nunca desiste. Nem quando o presidente do seu clube invadiu o estúdio, afirmando que ali estava porque o Seara não estava a ser capaz de defender o Benfica, dando origem a umas das mais lamentáveis cenas de humilhação pública em directo, o Seara se foi abaixo. Na semana seguinte lá estava ele aos pulinhos na cadeira como se nada fosse.
E desenganem-se se julgam que o Seara é só comentador! Um destes dias, a propósito de um daqueles inúmeros penáltis falsos de que o Benfica beneficiou, o Seara vira-se para a câmara, com um ar muito sério e atira com qualquer coisa do género: «nós, os que já jogámos futebol e andámos lá em baixo no campo sabemos muito bem que estes lances são penalidade». Toma lá, vai buscar. Que treta é essa de ver na televisão? O Seara é que sabe porque tem a experiência do craque no campo. Vejo futebol há muitos anos e o único careca de que me lembro é o Caccioli, mas pronto: omissão minha não me lembrar desse grande craque que agora é comentador. É que o Seara, como qualquer pensador do futebol moderno, advoga a utilização dos «meios tecnológicos». Nunca disse concretamente a que é que se estava a referir, mas a expressão anda na moda e ele tem que a utilizar. Só que, tratando-se do Benfica, quais meios tecnológicos, qual carapuça? O Seara é que sabe se é penálti porque ele é que andou «lá no campo». Que se lixem então as imagens televisivas.
Eu acho que o verdadeiro problema do Seara, mais do que levar-se demasiado a sério, mais do que não entender nada de futebol, mais do que ser chato, é não ter vídeo em casa para poder gravar os programas e ver as figuras que todas as semanas faz na televisão. Não haverá por aí nenhum amigo que lhe ofereça um? Poupavam-se incómodos a muita gente. Tenho amigos benfiquistas, daqueles que gostam de ver este tipo de debates, que há muito tempo me dizem que se sentem incomodados sempre que vêem o Seara na televisão a falar em nome do Benfica. E só por isso nem vêem o programa. Mas, se calhar, há quem goste. Eu não conheço ninguém.
Pronto. Eu sei bem que a prosa já vai longa e o assunto não dá para tanto. Mas porra, um gajo não é de ferro e a paciência tem limites.

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